De Segunda a Sexta, 300 palavras por dia.

21
Jul 08

É tão tranquilo viver aqui... Sou mantido quente, confortável e alimentado. Aqui estou sempre em segurança... e quando não estou, não o sinto e portanto não sofro. Por vezes ouço uma voz que fala comigo e que sem dúvida me ama.
Não há local tão acolhedor como este, não há existência tão maravilhosa como a minha.
A única desvantagem é ter de mudar de casa de tempos a tempos e são essas as únicas alturas em que sinto dor. De qualquer forma, já o fiz tantas vezes que já nem sinto tanto esse curto sofrimento... até porque sei que a seguir me aguarda uma nova maravilha como esta! Também gosto de descobrir novas vozes e novos amores de cada vez que me mudo!
Por falar nisso, pelo meu aspecto já falta muito pouco para ter de procurar nova casa. Ora deixa-me cá consultar o calendário... Xiça! Falta mesmo muito pouco! Pois... lá vem a mesma cena outra vez!
Sinto uma das paredes da minha casa rebentar e grande parte do meu conforto escapulir-se por aí. De repente, uma luz forte invade o meu espaço.

Está na hora.
Concentra-te, vá.
Concentra-te!
Ok!
Ai! Dói!
Aguenta!...
Já está!
Estou morto.

Já fora da minha residência passo pela mulher, chorando deitada de pernas abertas numa cama, que esperava ter um filho, e peço-lhe desculpa num sussurro. Agradeço-lhe também a oferta, mas viver nesse mundo vosso aí... não, obrigado!
Depois saio dali e chega a hora de procurar nova casa.

Vejamos...

Um casal está a reacender alguma paixão após anos de rotina... hm... não, muito velha a mulher... pode dar problemas.
E aquela? Ah, boa! Sexo com o pseudo-namorado, adolescente moralista... perfeito! Adoro adolescentes! Adoro ser o primeiro residente de um ventre fresco. Escolhida!

Aqui vou eu!

publicado jjnopants às 00:01
Autoria::

2 comentários:
Há coisas assim. Para quem perdeu um filho, ver a situação transformada numa historieta engraçada é o suficiente para perder a vontade de ler mais uma linha que seja.

/unsusbscribe.
pedrocs a 22 de Julho de 2008 às 11:33

MACACORAIVOSO comentou: "Há coisas assim. Para quem perdeu um filho, ver a situação transformada numa historieta engraçada é o suficiente para perder a vontade de ler mais uma linha que seja.

/unsusbscribe."

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Antes de mais, devo confirmar o que me parece evidente no próprio texto: esta história pretende ser uma parábola (como aliás grande maioria das histórias). Ela coloca questões (não respostas) psicológicas e filosóficas que me interessam particularmente:
- a relação que o ser tem com o ego e que o ego tem com o ventre materno, que ao nascer se manifesta com uma eterna e intensa procura por um ventre artificial, o mais idêntico possível ao real, que lhe foi traumaticamente retirado. Isto é, uma posição que lhe permita ter o que tinha no ventre real (alimentação e conforto "gratuitos") e até que ponto uma mente infantil (não necessáriamente criança de corpo) está disposta a ir para o obter;
- uma perspectiva acerca do mundo "fora-do-ventre", que pretende colocar o leitor a questionar-se acerca do tipo de mundo em que um novo membro da espécie humana terá de ser inserido.

De qualquer forma, e depois desta explicação em que preparei o trabalho de casa do leitor, devo dizer (sem qualquer desrespeito) que me surpreendeu obter um comentário deste tipo. Não pelo facto de o comentário ser fruto de emoções e traumas, mas porque surge para com uma curtíssima história que é bastante leve e nada gratuita na sua apresentação, quando comparada com a violência e crueldade aí sim gratuitas e distribuidoras de medo de um Telejornal, ou de um qualquer discurso político paterno "apelando à segurança" ou mesmo daquilo que poderia ser um debate (e que nunca chega a sê-lo) acerca do jogo de bola do dia anterior num qualquer café.

A minha surpresa para com isto é, portanto, acompanhada por uma sensação de dever cumprido: a reacção existiu. Cabe agora ao leitor lidar com ela, trabalhá-la, como milhões de pessoas lidam com a perda de filhos ou de pessoas próximas, com as dívidas esclavagistas a entidades piramidais, protegidas por complexos de "legalidade certificada" forçados na psique comum, com a fome que consome o corpo e a mente e não deixa espaço para mais nada - nem ambições, nem pensamentos, nem tão pouco indignação para com o que alguém escreve ou diz.

De repente, e ao escrever isto, lembrei-me de uma passagem do filme "Star Trek V: The Final Frontier" que define aquilo que penso neste momento:

«James T. Kirk: What is this power you have to control the minds of my crew?
Sybok: I don't control minds. I free them.
Leonard McCoy: How?
Sybok: By making you face, and draw strength from it. Once that's done fear cannot stop you.
(...)
James T. Kirk: Damn it Bones, you're a doctor. You know that pain and guilt can't be taken away with the wave of a magic wand. They're the things we carry with us, the things that make us who we are. If we lose them, we lose ourselves. [to Sybok] I don't want my pain taken away! I need my pain!»

Como nem toda a gente domina o inglês, traduzo:

«James T. Kirk: Que poder é este que tens para controlar as mentes dos da minha tripulação?
Sybok: Eu não controlo mentes. Eu liberto-as.
Leonard McCoy: Como?
Sybok: Fazendo-vos enfrentar e extrair força delas. Quando isso está feito, o medo não vos poderá bloquear.
(...)
James T. Kirk: Merda Bones, tu és um médico. Tu sabes que a dor e a culpa não podem ser retirados com o aceno de uma varinha mágica. Eles são aquilo que nos transporta, aquilo que faz de nós o que somos. Se os perdermos, perdemos a nós próprios. [dirigindo-se a Sybok] Eu não quero a minha dor removida! Eu preciso da minha dor!»

E eu concluo: «Eu preciso da minha dor... porque se eu não a conquistar, nada nem ninguém o fará por mim.»
Rui Diniz a 24 de Julho de 2008 às 23:52

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