O senhor Vítor, refastelado no sofá desde que o jantar tinha terminado enquanto, fantasiava que era dentista. A mulher, Marilena de nome e brasileira de coração, estava na cozinha a levantar a mesa. Lavava a loiça ao som das várias novelas brasileiras que os canais nacionais ofereciam e por lá continuaria até se ir deitar.
O senhor Vítor teve de abandonar a faculdade quando a namorada embuchou. Agora ganha a vida como empregado de mesa num restaurante indiano. É um emprego que o deprime, pois o cheiro a caril faz-lhe arder os olhos. Assim atende os clientes com um olhar macilento e avermelhado, que se foca nos dentes. Tal como se de cavalos se tratassem, o senhor Vítor conhece os clientes pela dentadura.
O senhor Vítor, desperto dos seus devaneios, volta ao livro pequenito que andava a ler. Este não era o seu hábito. Normalmente lia revistas mensais da especialidade de ortodontia e de escalada radical, que praticava religiosamente todos os domingos. Mas ainda não tinha recebido os números deste mês, e estava particularmente enfastiado com a vida e com a janta. Era um romance de cordel da esposa, no qual já ia a meio. As cenas dos beijos eram efusivamente descritas:
“Jack reclinou-se e beijou longa e apaixonadamente Mary, a sua nova conquista.”
“Beijou longa e apaixonadamente...” – pensava para si – “...isso envolvia “movimento dji língua”, como dizia a sua Marilena! Qual seria o elixir oral que Jack usaria? Talvez o novo produto branqueador e redutor da actividade bacteriana lançado recentemente pela Caredent? Tinha de ser algo de muito boa qualidade, caso contrário um beijo apaixonado nunca seria muito longo!”
A Marilena tinha acabado a loiça e entretinha-se com uma novela, quando sentiu as mãos do marido a agarrem-lhe a cintura. Victor sussurrou-lhe ao ouvido e Marilena sorriu: “Afinal aqueles livrinhos tinham servido de alguma coisa!”