- Como posso viver um dia de cada vez, se sinto que vivo todos ao mesmo tempo?
Era uma boa pergunta. O meu entrevistado, que pediu para manter o anonimato, tinha uma capacidade invulgar: o seu cérebro não eliminava memórias. Ele lembrava-se de tudo, de forma tão nítida e lúcida como se estivesse a acontecer no presente.
- Quantas pessoas já lhe disseram que desejavam ter o seu "dom"? - Era uma pergunta algo óbvia, mas não lhe resisti.
- 243 - respondeu sem hesitar. - As pessoas pensam que ter memória permanente é muito giro e útil. Mas não é. Elas não imaginam... Não sabem...
Pensei por segundos que ele ia chorar. O peso das memórias pode ser esmagador mesmo para quem tem a sorte de as poder esquecer. Mas para ele, elas estão sempre vivas, e o impacto dos acontecimentos nunca diminui. Não me teria surpreendido se a conversa comigo o tivesse confrontado com algo doloroso do seu passado. Mas de repente, olhou na minha direcção como se eu não estivesse ali, com um sorriso preguiçoso nos lábios.
Perguntei-lhe o que estava a "recordar".
- Heroína - riu-se. - Quando me sinto a focar-me... a focar-me sem querer em algo mau, a vez em que experimentei é porreira para reviver.
- É assim que consegue aguentar? É tudo uma questão de foco?
- Tento que seja. Muitas vezes, focar-me só no que quero funciona. A maioria das vezes, não.
Acabei por sair dali sentindo que mal tínhamos aflorado a questão. Havia muito mais por dizer sobre a condição dele, e combinámos que voltaria noutro dia, talvez para uma segunda reportagem, ou só para uma conversa amigável.
Não tive essa hipótese. Ele foi encontrado morto pouco depois, com um buraco na nuca aberto por um berbequim. Oficialmente, foi suicídio.
Eu acho que ele só queria deixar as memórias escapar.