É estranho quando olhamos para o espelho,e a cara que vemos não parece ser a nossa.
Ás vezes estamos tão embrenhados na tarefa que estamos a fazer, que nos esquecemos completamente da nossa própria aparência. Simplesmente não pensamos nisso, e a mente arquiva essa informação.
Nessas alturas, ao passarmos num espelho, o cérebro não reconhece o rosto que vê como sendo o seu. Por um segundo, estamos livres da nossa máscara, da visão que os outros têm de nós. Por um segundo livrámo-nos da bagagem que vem com a nossa identidade.
Por um segundo somos livres.
Sempre foi fascinante para mim, esse momento. Suponho que é por isso que dediquei a minha vida a ele, ao estudo da relação entre a imagem e a identidade. Sei que um dia o meu trabalho será reconhecido, e finalmente a humanidade aprenderá a não se deixar definir pelo fisico. Aprenderá que aquele momento de não reconhecimento é o momento em que realmente somos nós próprios, sem adornos nem artificios. E iniciará finalmente o percurso em direcção à cura final da mente e do espírito. Usará a abstracção da identidade como caminho para a Iluminação. E será por minha causa.
Paro em frente ao espelho da casa de banho. Por um momento, não reconheço o rosto. Não é o meu. Por um momento, estou livre. Mas o momento passa, e o reconhecimento volta.
O rosto continua a não ser o meu.
Retiro a pele rasgada de cima da minha cara, com cuidado para não a estragar mais. Limpo o meu rosto, este sim meu, libertando-o do sangue do rosto alheio, que faço por devolver ao resto do seu dono, agora tão morto como o pedaço de pele.
Mas mudo de ideia. Atiro o rosto dele para o lixo. Mesmo morto, ele merece continuar livre.