Ainda me recordo de ser criança, e ter medo de ser um lobisomem.
Costumava ficar acordado nas noites de lua cheia, receoso de que o monstro dentro de mim saísse se eu adormecesse. Assim que sentia alguma comichão, ou outra sensação fora do normal, entrava em pânico, com medo de que a transformação estivesse a começar.
Os medos eram infundados, claro. Nunca me transformei em nada, nunca saiu nenhum monstro de dentro de mim.
O medo passou eventualmente, mas acho que nunca desapareceu. Toda a vida fui o género de pessoa que evita conflitos a todo o custo, e que tenta nunca colocar-se em posição de perder o controle.
Talvez esteja relacionado, ou talvez sejam apenas dois reflexos distintos de um mesmo traço de personalidade.
O certo é que a lua cheia continua a deixar-me nervoso.
Mas não hoje.
Hoje, a luz prateada banha-me e sinto-me livre.
Sinto a cabeça leve.
Não me recordo bem\do que aconteceu. Só de passar em frente ao beco onde estou, e cruzar-me com um homem que nunca tinha visto antes. Depois disso, nada.
Olho para mim mesmo, e pergunto-me de onde terá vindo todo este sangue, até que vejo o corpo estendido no chão, de face quase disforme.
É o homem com quem me cruzei.
Não sei porque lhe fiz isto. Mas em vez de perder a cabeça, sinto-me mais livre do que nunca. Sinto-me feliz.
Olho para as minhas mãos, em dúvida. Mas não, são as minhas mãos, idênticas ao de sempre. Humanas. Manchadas de sangue, mas normais.
Apetece-me rir, pular!
Em vez disso, agacho-me, e com uma dentada, arranco um pedaço do braço inerte da minha vítima. Mastigo-o, engulo-o, e sabe-me melhor que qualquer outra coisa que tenha comido.
Rendo-me à minha natureza, e repito. Todo o medo que tinha de me libertar desaparece.
E finalmente, aceito-me como realmente sou.