Assim que a enfermeira deixou o quarto, Filipe deitou o cigarro à boca e acendeu-o com o isqueiro velho. Tossiu violentamente dois segundos depois.
Definitivamente, ele não era fumador. Mas pelo menos, agora tinha a certeza disso.
Era das poucas certezas que tinha desde o acidente, e agarrava-se a elas. Afinal de contas, quem não tem memória agarra-se às experiências que vai tendo. Especialmente as que lhe dizem algo sobre quem é.
Olhou para os montes de caixas de arquivo morto que lhe tinham trazido, supostamente da sua casa. "Não sei até que ponto a casa é minha, se não me lembro de alguma vez lá ter posto os pés, mas pronto."
Fez por afastar o pensamento da sua mente. Pegou numa das cerca de 50 caixas, e abriu-a.
"Pelos vistos gosto de escrever..."
A caixa estava cheia de folhas soltas, umas com ideias rascunhadas, outras com histórias. Pegou noutra caixa, e noutra, e noutra, e o conteúdo de todas era semelhante. Páginas soltas com textos claramente autobiográficos, recortes de artigos de revistas escritos por sí, histórias inteiras e por terminar. Tudo isto com assuntos dos mais diversos, desde sexo e amor até colónias noutros planetas, passando por meditações pessoais e entrevistas com gente estranha.
Muitos dos textos eram demasiado curtos ou genéricos para perceber se eram reais ou ficção. Mas Filipe sabia que perdido algures naquele puzzle de palavras, estava boa parte do seu passado. Não fazia era ideia de como o perceber...
Passou horas de volta das 50 caixas, até que tomou uma decisão. Despejou tudo no chão, e deitou fogo a todas as folhas.
E sem apagar o isqueiro, acendeu um cigarro.
Desta vez não tossiu. Pelo contrário, suspirou de alívio.
"Que se lixe", pensou, não contendo um sorriso. "Não fumava? Agora fumo. O resto já não interessa."