Paula sofria quase todos os dias. Não conseguia aplacar a sua dor da sua perda. Sentia-se morta, vazia, dormente e incapaz de enfrentar o futuro. Decidiu enterrar o passado, assim como tinha feito o funeral ao marido.
Comprou uma bela caixa de madeira trabalhada, incrustada de marfim e madrepérola: bela urna para um belo passado.
Juntou ícones da vida partilhada e colocou-os nessa caixa. As fotos de ambos quando eram adolescentes, as alianças que usaram, ainda namorados, simples aros de ouro, plenos de amor e de sonhos, o primeiro disco comprado a meias, o primeiro livro devorado, dois a dois, juntos, encostados, no calor da cama, no seio da sua intimidade, o relatório do médico que trouxe à luz o inimigo que lhe levou parte da sua vida, que lhe rasgou o corpo ao meio, aquele monstro de células loucas, tresloucadas que se alimentaram vorazmente do cérebro de Manuel, uma folha rasgada do calendário do dia 5 de Janeiro, que bom seria arrancar todos os 5 de Janeiro do futuro, o último pijama que Manuel vestira e uma rosa amarelo torrado, flor que ele lhe oferecia todos os anos para lembrar e celebrar o dia em que se conheceram.
Ao olhar para o interior da caixa e a dor rasgou-lhe o peito mais uma vez. Fechou a caixa, lenta, muito lentamente, como a adiar o fim da sua vida.
No seu quintal, debaixo da nespereira pontilhada de amarelo torrado dos frutos maduros, Paula enterrou o seu passado. O peito rasgou-se ainda mais e ela deixou-se cair, encostada ao tronco da árvore e chorou silenciosamente, em paz. Deixou as lágrimas fugirem livremente, levando com elas a dor e limpando a alma.
Paula secou os olhos,
limpou a cara,
sacudiu a terra,
levantou-se
e pode enfim,
olhar em frente.